CAMPANHA GLOBAL DO GAIA REVELA SEGREDOS DE PAR ESTELAR 24 de janeiro de 2020
Impressão de artista do sistema binário descoberto no evento de microlente Gaia16aye, a sua gravidade distorcendo o tecido do espaço-tempo e o percurso da luz de uma estrela ainda mais distante.
Crédito: M. Rębisz
Uma campanha de observação global de 500 dias, liderada há mais de três anos pelo Gaia da ESA, forneceu informações sem precedentes sobre o sistema binário que provocou um aumento invulgar de brilho de uma estrela ainda mais distante.
O aumento no brilho estelar, localizado na constelação de Cisne, foi detetado pela primeira vez em agosto de 2016 pelo programa Alertas de Ciência Fotométrica do Gaia.
Este sistema, gerido pelo Instituto de Astronomia da Universidade de Cambridge, Reino Unido, varre diariamente a enorme quantidade de dados provenientes do Gaia e alerta os astrónomos para o aparecimento de novas fontes ou variações invulgares de brilho em fontes conhecidas, para que possam apontar rapidamente outros telescópios terrestres e espaciais e assim estudar os eventos em detalhe. Os fenómenos podem incluir explosões de supernova e outros surtos estelares.
Neste caso em particular, as observações de acompanhamento realizadas com mais de 50 telescópios em todo o mundo revelaram que a fonte - desde então denominada Gaia16aye - estava a comportar-se de uma maneira bastante estranha.
"Vimos a estrela a ficar cada vez mais brilhante e então, no espaço de apenas um dia, o seu brilho caiu rapidamente," diz Lukasz Wyrzykowski do Observatório Astronómico da Universidade de Varsóvia, Polónia, um dos cientistas do programa Alertas de Ciência Fotométrica do Gaia.
"Este foi um comportamento muito invulgar. Quase nenhum tipo de supernova ou outra estrela faz isto."
Lukasz e colaboradores perceberam em pouco tempo que este aumento de brilho foi provocado por uma microlente gravitacional - um efeito previsto pela teoria da relatividade geral de Einstein, que curva o espaço-tempo na vizinhança de objetos muito grandes, como estrelas ou buracos negros.
Quando um objeto tão grande, que pode ser demasiado fraco para ser observado da Terra, passa em frente de outra fonte de luz mais distante, a sua gravidade curva o tecido do espaço-tempo nas proximidades. Isto distorce o percurso da radiação oriunda da fonte de fundo - essencialmente comportando-se como uma lupa gigante.
Gaia16aye é o segundo evento de microlentes detetado pelo satélite da ESA. No entanto, os astrónomos notaram que se comportava estranhamente, mesmo para este tipo de evento.
"Se tivermos uma única lente, provocada por um único objeto, haverá apenas um pequeno e constante aumento de brilho e haverá um declínio suave à medida que a lente passa em frente da fonte distante e depois se afasta," diz Lukasz.
"Neste caso, não só o aumento de brilho estelar caiu acentuadamente, em vez de a um ritmo constante, como após algumas semanas, subiu novamente de brilho, o que é muito invulgar. Ao longo de 500 dias de observações, vimos o aumento e declínio de brilho cinco vezes."
Esta queda repentina e acentuada no brilho sugeriu que a lente gravitacional que provocava o aumento de brilho devia consistir de um sistema binário - um par de estrelas ou outros objetos celestes, ligados entre si pela gravidade mútua.
Os campos gravitacionais combinados dos dois objetos produzem uma lente com uma rede bastante complexa de regiões de alta ampliação. Quando uma fonte de fundo passa por estas regiões no céu, aumenta de brilho e depois cai imediatamente ao sair delas.
A partir do padrão de aumentos e quedas de brilho subsequentes, os astrónomos conseguiram deduzir que o sistema binário estava a orbitar a um ritmo bastante rápido.
"As órbitas eram rápidas o suficiente e o evento geral de microlente era lento o suficiente para a estrela de fundo entrar na região de alta ampliação, sair e entrar novamente," explica Lukasz.
O longo período de observações, que durou até ao final de 2017, e a grande participação de telescópios terrestres espalhados por todo o mundo, permitiram aos astrónomos recolher uma grande quantidade de dados - quase 25.000 pontos de dados individuais.
Além disso, a equipa também utilizou dúzias de observações desta estrela obtidas pelo Gaia, enquanto continuava a vasculhar o céu ao longo dos meses. Estes dados foram submetidos a calibração preliminar e foram tornados públicos como parte do programa Alertas de Ciência Fotométrica do Gaia.
A partir deste conjunto de dados, Lukasz e colegas foram capazes de aprender muitos detalhes sobre o sistema binário de estrelas.
"Nós não vemos este sistema binário mas, observando apenas os efeitos que criou ao agir como lente sob uma estrela de fundo, fomos capazes de saber tudo sobre ele," diz o coautor Przemek Mróz, estudante de doutoramento na Universidade de Varsóvia durante o início da campanha e que é atualmente bolsista de pós-doutoramento no Instituto de Tecnologia da Califórnia.
"Pudemos determinar o período de translação do sistema, as massas dos componentes, a sua separação, a forma das suas órbitas - basicamente tudo - sem ver a luz dos componentes binários."
O par consiste de duas estrelas bastante pequenas, com 0,57 e 0,36 vezes a massa do nosso Sol, respetivamente. Separadas por aproximadamente o dobro da distância Terra-Sol, as estrelas orbitam em torno do seu centro de massa comum em menos de três anos.
"Se não fosse o Gaia a estudar todo o céu e a enviar os alertas imediatamente, nunca teríamos sabido sobre este evento de microlentes," diz o coautor Simon Hodgkin da Universidade de Cambridge, que lidera o programa Alertas de Ciência Fotométrica do Gaia.
"Talvez o encontrássemos mais tarde, mas aí se calhar já seria tarde demais."
A compreensão detalhada do sistema binário dependia da extensa campanha de observação e do amplo envolvimento internacional que o evento Gaia16aye atraiu.
"Reconhecemos os astrónomos profissionais, astrónomos amadores e voluntários de todo o mundo que observaram este evento: sem a dedicação de todas estas pessoas, não teríamos sido capazes de obter estes resultados," diz Lukasz.
"Os eventos de microlente como este podem lançar luz sobre objetos celestes que, de outra forma, não poderíamos ver," diz Timo Prusti, cientista do projeto Gaia na ESA.
"Estamos muito satisfeitos que a deteção do Gaia tenha desencadeado a campanha de observação que tornou este resultado possível."
Animação que faz zoom na estrela 2MASS19400112+3007533, localizada na direção da constelação de Cisne. Após a deteção do aumento súbito de brilho desta estrela pelo satélite Gaia da ESA em agosto de 2016, a fonte também é referida como Gaia16aye.
Ao início, a animação mostra uma grande parte do Plano Galáctico, com base em dados do levantamento Mellinger e abrangendo 120º; seguidamente, a imagem move-se para uma porção mais pequena do céu, com cerca de meio-grau, pelo Digital Sky Survey; finalmente, um campo ainda mais pequeno, com cerca de 1 minuto de arco, centrado na estrela e com base no levantamento Pan-STARRS1.
Crédito: Mellinger/Digital Sky Survey/Pan-STARRS1; Wyrzykowski et al.
Este gráfico mostra a variação de brilho da estrela Gaia 16aye provocada pelo evento de microlente, à medida que um objeto massivo no plano da frente - um sistema binário - passava entre essa estrela e a Terra. O brilho está indicado no eixo vertical em termos de magnitude astronómica, os valores mais pequenos (para o topo) indicando um brilho mais elevado; o eixo vertical é o tempo.
Este gráfico mostra dados recolhidos ao longo de um período de quase dois anos com mais de 50 telescópios espalhados pelo mundo, como parte de uma campanha de observação global liderada pelo satélite Gaia da ESA. As medições de brilho obtidas com o Gaia são vistas como os símbolos pretos em forma de diamante, ao passo que as observações terrestres foram realizadas com uma variedade de telescópios e podem ser vistos como círculos mais pequenos, quadrados, diamantes e triângulos de diferentes cores.
Crédito: Adaptado de Wyrzykowski et al. 2019