Investigadores de Cornell forneceram uma explicação simples e compreensiva - se bem que menos dramática - para os reflexos brilhantes de radar inicialmente interpretados como água líquida sob a calote de gelo no polo sul de Marte.
As suas simulações mostram que pequenas variações nas camadas de água gelada - demasiado subtis para serem resolvidas pelos instrumentos de radar de penetração no solo - podem causar interferência construtiva entre as ondas de radar. Esta interferência pode produzir reflexões cuja intensidade e variabilidade coincidem com as observações efetuadas até à data - não só na área que se propõe ser água líquida, mas também nos chamados depósitos de camadas do polo sul.
As conclusões baseiam-se em simulações de 10.000 cenários de camadas e, para cada um, 1000 variações na espessura das camadas de gelo e no teor de poeira - mas nenhuma das condições invulgares ou materiais exóticos que seriam necessários para a existência de água líquida.
"Não posso dizer que seja impossível que exista água líquida 'lá em baixo', mas estamos a mostrar que há formas muito mais simples de obter a mesma observação sem ter de ir tão longe, usando mecanismos e materiais que já sabemos que existem", disse Daniel Lalich, investigador associado do CCAPS (Cornell Center for Astrophysics and Planetary Science), na Faculdade de Artes e Ciências. "Apenas através do acaso é possível criar o mesmo sinal observado no radar".
Lalich é o primeiro autor de um artigo científico publicado no dia 7 de junho na revista Science Advances. Os coautores são Alexander Hayes, professor no Departamento de Astronomia e diretor do CCAPS, e Valerio Poggiali, investigador associado do CCAPS.
Os exploradores robóticos forneceram evidências extensivas de que a água correu à superfície no passado de Marte, incluindo num antigo delta atualmente sob investigação pelo rover Perseverance da NASA. Com base num instrumento de radar que pode sondar abaixo da superfície para detetar água gelada e, potencialmente, aquíferos escondidos, os membros da equipa científica do orbitador Mars Express, liderada pela ESA, anunciaram em 2018 que tinham descoberto um lago enterrado abaixo da calote polar sul.
As implicações eram enormes: onde há água líquida, pode haver vida microbiana.
Mas ao passo que os mesmos reflexos brilhantes de radar indicariam provavelmente um lago subglacial na Terra, disse Lalich, as condições de temperatura e pressão em Marte são muito diferentes. Neste caso, a água líquida teria de ser uma salmoura espessa, ou exigiria minerais exóticos ou uma câmara de magma ativa por baixo da calote polar - nenhum dos quais foi detetado. Entretanto, as observações de outra nave espacial mostraram reflexos brilhantes distribuídos pelos depósitos em camadas, a profundidades variáveis e sem correlação com as condições da superfície. As condições que permitiriam a existência de água no local inicial, com cerca de 19 quilómetros de largura, não se aplicariam noutros locais, disse Lalich.
Utilizando modelos mais simples, Lalich mostrou anteriormente que os brilhantes sinais de radar poderiam ser criados na ausência de água líquida, mas disse que as suposições sobre camadas de dióxido de carbono gelado abaixo da calota de gelo provavelmente estavam incorretas.
A nova investigação conta uma história mais completa, disse, colmatando lacunas na hipótese da interferência do radar com modelos mais realistas. Os milhares de cenários de camadas gerados aleatoriamente basearam-se apenas nas condições conhecidas nos polos marcianos e variaram a composição e o espaçamento das camadas de gelo de formas que seriam de esperar ao longo de dezenas ou centenas de quilómetros.
Esses ligeiros ajustes produziram por vezes sinais subsuperficiais brilhantes, consistentes com observações em cada uma das três frequências utilizadas pelo instrumento de radar MARSIS da sonda Mars Express, uma parceria entre a NASA e a Agência Espacial Italiana. Provavelmente por uma razão simples, argumenta Lalich: ondas de radar ressaltando de camadas demasiado próximas para que o instrumento as possa resolver podem ser combinadas, amplificando os seus picos e quedas.
"Esta é a primeira vez que temos uma hipótese que explica toda a população de observações abaixo da calota de gelo, sem ter de introduzir nada de único ou estranho", disse Lalich. "Este resultado, em que obtemos reflexos brilhantes espalhados por todo o lado, é exatamente o que se esperaria de uma interferência de camada fina no radar".
Apesar de não excluir a possibilidade de uma futura deteção por instrumentos mais sensíveis, Lalich disse suspeitar que a história da água líquida e da potencial vida no Planeta Vermelho terminou há muito tempo.
"A ideia de que haveria água líquida, mesmo que um pouco perto da superfície, teria sido muito excitante", disse Lalich. "Apenas acho que não existe".
// Universidade de Cornell (comunicado de imprensa)
// Artigo científico (Science Advances)
Quer saber mais?
CCVAlg - Astronomia:
04/10/2022 - Novas evidências de água líquida sob a calote polar sul de Marte
03/08/2021 - Argilas, não água, são a fonte provável dos "lagos" de Marte
29/06/2021 - Estudo examina mais de perto os sinais de água subterrânea em Marte
02/10/2020 - Mars Express descobre mais lagos subterrâneos em Marte
27/07/2018 - Mars Express deteta água líquida escondida sob o polo sul de Marte
Marte:
CCVAlg - Astronomia
Wikipedia
Lagos subglaciares (Wikipedia)
Mars Express:
ESA
Wikipedia
Rover Perseverance:
NASA
NASA - 2
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